Há dez anos, ONU declarava acesso a água e saneamento como direitos humanos
Quando foi morar no Jardim Emburá, extremo sul da cidade de São Paulo, Kátia Marques soube que a água não era canalizada e, sem opção, viu a rotina de encher baldes no caminhão pipa se tornar parte de sua realidade. O que ela não imaginava é que, mais de cinco anos depois, a situação ainda seria a mesma.
Assim como Kátia, que é mãe de duas crianças de 7 e 13 anos, centenas de famílias do bairro sobrevivem sob as mesmas condições. Elas fazem parte dos 16% da população, aproximadamente 35 milhões de pessoas, que não têm acesso à água tratada no Brasil, segundo os números mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Os poços de água não tratada estão em quase todos os quintais das casas do Jardim Emburá, localizado no distrito Engenheiro Marsilac. Para não depender dos escassos caminhões pipa enviados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), a única opção de Kátia é utilizar a água do fosso para cozinhar e tomar banho.
“A água sai [do poço] amarronzada e temos que esperar assentar. Pegamos o cloro que dão no postinho pra gente mesmo tratar a água. Esperamos uma três horas pro cloro pegar e limpar um pouco”, explica Kátia, de 33 anos, que relata consequências na saúde da família.
“Até o meu [filho] de 13 anos ficou com micose no corpo, começou a estourar feridas. Pra gente viver aqui é muito ruim com essa água. Tentamos brigar com a Sabesp pra ver se eles trazem mais caminhão-pipa ou instalam nossa água. Mas, como sempre, eles dão desculpa e vão adiando. Fica bem difícil”, desabafa
Segundo ela, os próprios médicos do Centro de Saúde avaliaram que a irritação na pele do adolescente era em decorrência da água não tratada.
Também morador do Jardim Emburá, Felipe Baiano endossa a denúncia da falta de água. “Não tem água na torneira. O caminhão pipa trazia para uma caixa d’água que tinha lá embaixo e as pessoas pegavam no balde mas pararam de trazer. Ai quem tem bomba faz um poço artesiano, quem tem dinheiro. Quem não tem, fica sem água.”
Na casa onde Felipe mora com a esposa e dois filhos, o acesso à água só é possível porque o sogro, que vive próximo e retira água de uma bica local, estendeu uma mangueira com mais de 300 metros para bombear água até a casa da filha.
Felipe afirma que as regiões do distrito de Marsilac que circundam o Jardim Emburá possuem água tratada e encanada. No bairro que está no meio do caminho, no entanto, não saí um pingo da torneira.
Segundo o jovem, muitos dos aproximadamente sete mil moradores do bairro já procuraram a Sabesp para pressionar pela chegada da água tratada, mas não obtiveram sucesso. Agora ele recolhe assinaturas para um abaixo-assinado que será entregue para a Companhia e para as autoridades de saúde. Os moradores contam com apoio da Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo (Facesp).
“Eles sabem da situação. Tanto sabem que dão cloro pra gente tratar a água em casa. Tem pessoas que moram aqui há mais de 30 anos e até desistiram [de lutar pela água tratada]”, lamenta Felipe.
Direito fundamental
O cotidiano no Jardim Emburá é apenas um caso entre tantos da realidade brasileira que colocam em xeque uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada em 28 de julho de 2010. Há exatamente dez anos, o órgão declarou o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico como direitos humanos fundamentais.
Outros dados do SNIS 2019 constatam a gravidade do cenário. Em 2019, apenas 46% do esgoto gerado no país foi tratado e quase 100 milhões de pessoas utilizaram medidas alternativas para lidar com os dejetos, seja por meio de fossas ou jogando o esgoto diretamente em rios.
Edson Aparecido da Silva, secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), ressalta a importância da resolução da ONU mas aponta que muitas nações ainda não incorporaram esse direito aos seus instrumentos legais.
É o caso da Constituição Brasileira, que por meio do artigo 6º estabelece a saúde, a educação, a segurança, a moradia, entre outros, como direitos sociais, mas não cita o acesso à água e ao saneamento.
Ele explica a maior parte da população desassistida se concentra nas regiões Norte e Nordeste do país, assim como nas periferias das grandes cidades, nos morros, nas favelas, nas vilas e nas palafitas.
“O direito humano ao acesso à água e ao esgotamento sanitário é efetivamente cumprido quando todas as pessoas, independente da capacidade de pagamento pelos serviços, independente de onde e das condições que vivam, tenham acesso a esse serviços. Estou falando, inclusive, de incorporar esse direito à população que vive em situação de rua, que é completamente excluída”, critica.
Em que pese a situação crítica de boa parte dos brasileiros, o especialista pondera que, desde o início dos anos 2000, houve avanços nas políticas da área, a partir da criação do Ministério das Cidades – em 2003, pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva – e do desenvolvimento de políticas urbanas.
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