Privatização do saneamento: Entre promessas de eficiência e riscos à dignidade

Por Luis Moura*

A crescente onda de privatizações no setor de saneamento básico no Brasil tem gerado inquietações legítimas sobre os rumos da política pública voltada ao acesso à água e ao esgotamento sanitário. O caso do Rio de Janeiro, que escanteou o BNDES para contratar uma consultoria privada visando a venda da produção de água da Cedae, é emblemático. A decisão contraria o modelo anterior do banco estatal, que defendia a manutenção da captação sob controle público. A mudança sinaliza uma tendência de desmonte da estrutura estatal, com implicações profundas para a população.

O marco legal do saneamento, aprovado em 2020, estabeleceu metas ambiciosas: até 2033, 99% da população deve ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto. Embora tenha impulsionado investimentos, os valores ainda são insuficientes. A média nacional de R$ 127 por habitante está bem abaixo dos R$ 223 previstos pelo Plansab. A desigualdade regional é gritante, com o Norte e o Nordeste recebendo menos da metade dos recursos do Sudeste. Isso revela que, mesmo com avanços legais, o saneamento continua sendo negligenciado onde mais se precisa.

A proposta de privatização da Copasa em Minas Gerais, acompanhada da PEC que retira a obrigatoriedade de consulta popular, levanta sérias preocupações democráticas. A exclusão da população do processo decisório sobre um serviço essencial como o abastecimento de água é um retrocesso. A justificativa do governo estadual é a necessidade de amortizar dívidas com a União, mas isso não pode se sobrepor ao direito básico da população de opinar sobre o destino de um bem público.

A lógica da privatização parte do pressuposto de que a iniciativa privada é mais eficiente. No entanto, essa eficiência é medida pelo lucro, não pela universalização do serviço. Empresas privadas tendem a investir onde há retorno garantido, deixando comunidades periféricas e áreas irregulares à margem. A remuneração média do trabalhador brasileiro gira em torno de dois salários mínimos, o que torna qualquer aumento tarifário um peso desproporcional para famílias vulneráveis.

O modelo proposto pelo BNDES, que separa a captação (pública) da distribuição (privada), já apresenta sinais de fragilidade. O Rio de Janeiro, por exemplo, quer privatizar também a captação, o que pode gerar conflitos de interesse entre empresas com objetivos distintos. Se a mesma empresa não controla todo o ciclo da água, há risco de descoordenação, negligência e falta de responsabilização. A água, por sua natureza, exige gestão integrada e comprometida com o bem-estar coletivo.

Outro ponto crítico é o prazo das concessões: 35 anos. Trata-se de um período longo demais para que os efeitos da decisão sejam sentidos pelos governantes que a autorizam. Isso cria um descompasso entre responsabilidade política e impacto social. A população, por sua vez, pode ficar refém de contratos mal desenhados, com cláusulas que dificultam revisões ou rescisões, mesmo diante de falhas graves na prestação do serviço.

A situação da Deso em Sergipe, com o rompimento da adutora do São Francisco, ilustra os riscos da má gestão. A suspeita de que a empresa espera o rompimento para agir, ao invés de realizar manutenção preventiva, é alarmante. A interrupção do abastecimento para quase um milhão de pessoas não pode ser tratada como um evento corriqueiro. O Ministério Público deveria exigir relatórios técnicos e planos de ação para evitar novos episódios. A água não pode ser gerida com base em improvisos.

Privatizar não é, por si só, sinônimo de progresso. É preciso avaliar com rigor os impactos sociais, econômicos e ambientais de cada projeto. A universalização do saneamento exige mais do que contratos e metas: requer compromisso com a dignidade humana. A água é um direito, não uma mercadoria. E como tal, deve ser protegida por políticas públicas que priorizem o acesso, a qualidade e a equidade.

A sociedade civil, os sindicatos e os movimentos populares têm papel fundamental nesse debate. A mobilização contra a retirada do referendo em Minas Gerais mostra que há resistência. É preciso ampliar esse diálogo, informar a população e exigir transparência dos governos. O futuro do saneamento no Brasil não pode ser decidido em gabinetes fechados, mas sim com participação ativa de quem mais depende desse serviço.

Em tempos de crise hídrica, desigualdade social e mudanças climáticas, o saneamento básico é mais do que infraestrutura: é saúde, é justiça, é vida. A privatização pode até parecer uma solução rápida, mas sem garantias de acesso universal, controle social e regulação eficaz, corre-se o risco de transformar um direito em privilégio. E isso, definitivamente, o Brasil não pode aceitar.

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Luis Moura é ex-supervisor técnico do Dieese.

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