Saneamento básico como direito social: uma questão de saúde pública
Por João Somariva Daniel e Marcos Helano Montenegro*
Em 2022, embora a DESO tenha comprovado, junto aos órgãos competentes, a capacidade econômico-financeira para promover, nos municípios onde atua, até 2033 a universalização dos serviços públicos de abastecimento de água (99% de atendimento) e de esgotamento sanitário (90%), nos termos da Lei 14.026/2020, o Governador do Estado, a pretexto de promover a universalização do atendimento com água e esgotamento, pôs em marcha um processo de concessão dos serviços públicos de distribuição da água potável e de coleta e tratamento de esgoto sanitário que não considera a realidade socioeconômica da população.
Existe aí um desconhecimento da realidade, pois em 2022, segundo o Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS), no Estado de Sergipe eram atendidas com abastecimento de água potável 2,025 milhões de pessoas, das quais 1,890 milhões pela DESO e 135 mil pelos serviços autônomos municipais (SAAEs) de Capela, Carmópolis, Estância e São Cristóvão.
Em todo o estado, 767 mil pessoas dispunham de esgotamento sanitário, sendo que 657 mil eram atendidas pela DESO, 7 mil pelo SAAE de Estância e 103 mil diretamente por prefeituras.
Também em 2022, o Censo do IBGE apurou uma população de 2.210.004 pessoas vivendo em Sergipe. Feitos os cálculos, para se chegar às metas de universalização, faltava, ao final de 2022, atender cerca de 163 mil pessoas com abastecimento de água e aproximadamente 1,22 milhão com esgotamento sanitário.
A pobreza atinge ainda 40% da população do nosso estado. São 752 mil habitantes na situação de extrema pobreza (renda familiar per capita até R$ 109,00 mensais), correspondentes a 34% da população sergipana; e na pobreza, com renda familiar per capita entre R$ 109 e R$ 218,00 mensais, são mais 134 mil pessoas, que somam 6% da população de Sergipe.
Para ampliar consequentemente o atendimento com os dois serviços de saneamento básico citados é preciso considerar este quadro socioeconômico, que para uma viável política de universalização, se deve ter como parâmetros básicos não cobrar para instalar novas ligações de água e esgoto, manter o mais baixo possível as tarifas domiciliares de água e esgoto e assegurar tarifa social reduzida para quem vive em situação de extrema pobreza ou pobreza.
Levando-se em conta a responsabilidade pública do Estado pelo bem-estar da população, envolvendo a qualidade de vida e a saúde pública, que tem como um dos pilares o saneamento público acessível, em termos de fornecimento de serviços e adequação de preços ao poder aquisitivo da população, não bate com a proposta do governador de concessão dos serviços públicos da DESO.
Aprovada na ALESE no final do ano passado, em pouco mais de uma semana, a Lei complementar criando a Microrregião de Água e Esgoto de Sergipe, incluindo os 75 municípios do estado, foi o primeiro passo para a concessão. Para apressar ainda mais o processo, foi feita a instalação do Colegiado Microrregional, visando concluir o negócio e entregar a parte mais lucrativa do saneamento básico do Estado para a iniciativa privada.
Mercantilizar a prestação de serviços públicos essenciais é péssimo por si só. Mas pode ficar pior, se ao invés de vencer a concessão de 35 anos aquele que oferecer a menor tarifa, considerar como vencedora do contrato a empresa que pagar o maior valor ao Estado.
Hoje, todo o lucro da DESO é reinvestido na ampliação e melhoria dos serviços, não há extração de lucro, o que é pressuposto na concessão privada. Aliás, exatamente por não pagar dividendos ao Estado é que a DESO conquistou no STF isenção de Imposto de Renda e de Imposto sobre as Operações Financeiras (IOF), tributos que a concessionária privada terá que pagar onerando as tarifas dos usuários.
A minuta do contrato de concessão divulgada para consulta pública prevê que, se mais de 5% dos usuários usufruírem de tarifa social, as tarifas pagas pelos demais usuários deverão ser elevadas, e com 40% da população em situação de pobreza ou extrema pobreza, ou muita gente que teria direito e necessidade de tarifa social ficará sem ela, ou as tarifas vão aumentar acentuadamente.
Para agravar o caso, o atendimento de 1,22 milhão de pessoas sem esgotamento sanitário, hoje, terá que pagar por esse serviço e terão um acréscimo de 80% nas suas contas. Também pagarão 80% a mais na conta de água as famílias que hoje têm serviços de esgoto gratuitos prestados pelas prefeituras de Areia Branca, Campo do Brito, Cedro de São João, Cumbe, Itabaianinha, Japaratuba, Macambira, Malhador, Moita Bonita, Monte Alegre de Sergipe, Nossa Senhora Aparecida, Pinhão, Porto da Folha e Santana do São Francisco.
Como já informado pelo Sindicato dos Trabalhadores do setor, o SINDISAN, quando os serviços dos SAAEs de Capela, Carmópolis, Estância e São Cristóvão forem privatizados, as tarifas de água e esgoto desses municípios serão aumentadas para se igualarem com as cobradas nos demais municípios.
É preciso identificar outras alternativas e comparar os benefícios e custos de cada uma delas. A alternativa de concessão precisa ser comparada com a opção de avançar rumo à universalização com a DESO, sem mercantilizar os serviços de saneamento básico. A alternativa, já aventada, de promover parceria público-privada restrita ao esgotamento e ao tratamento de esgoto em alguns dos municípios do Estado, também deve ser analisada, com a efetiva participação dos cidadãos e cidadãs sergipanos que vão pagar as contas.
Água é saúde e obrigação primordial do Estado, estando tramitando no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição PEC n.° 2, de 2016, com a coautoria do Senador Rogério Carvalho que altera o art. 6º da Constituição Federal para qualificar o direito ao saneamento básico como direito social. Daí a nossa responsabilidade de rever este processo de privatização, até para não sobrar para o Estado a obrigação de prestar os serviços para aqueles que não podem pagar por eles.
*João Somariva Daniel, deputado Federal pelo PT em Sergipe, presidente Estadual do PT em Sergipe, coordenador do Núcleo Agrário da Bancada do PT na Câmara dos Deputados.
*Marcos Helano Montenegro, engenheiro e mestre em Engenharia Urbana, diretor Nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).