A promessa não cumprida: Cinco Anos de privatização do saneamento no Brasil
Uma análise crítica das consequências sociais e econômicas da lei
Por Luis Moura*
Cinco anos após a promulgação da Lei 14.026/2020, que alterou o marco legal do saneamento básico no Brasil, o cenário que se desenha é muito diferente das promessas iniciais. O seminário realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em julho de 2025 trouxe uma conclusão alarmante: a universalização do acesso à água potável e ao esgotamento sanitário, um dos principais argumentos utilizados pelos defensores da privatização, simplesmente não aconteceu. Pelo contrário, o Brasil continua com 1.959 municípios em situação crítica, revelando que a lógica de mercado aplicada a um direito humano fundamental está falhando em atender às necessidades da população mais vulnerável. A realidade nua e crua é que, enquanto empresas privadas selecionam cuidadosamente as áreas mais lucrativas para atuar, milhões de brasileiros permanecem sem acesso digno à água e ao saneamento, evidenciando que a privatização não é uma solução mágica para problemas estruturais históricos.
Os anos de 2024 e 2025 marcaram uma aceleração sem precedentes no processo de privatização do saneamento brasileiro. Dados revelam que o setor privado cresceu extraordinários 466% no período, saltando de 5% dos municípios atendidos em 2020 para impressionantes 30% em 2024, com projeções de alcançar metade do Brasil até o final de 2025. Estados como Pernambuco, Pará e Rondônia se tornaram laboratórios dessa transformação, com processos licitatórios que movimentam bilhões de reais. O que mais chama atenção é a velocidade com que governos estaduais, incluindo alguns que historicamente defendiam a gestão pública, abraçaram essa agenda. Essa corrida desenfreada em direção à privatização levanta questões profundas sobre prioridades políticas e sobre se estamos testemunhando uma genuine modernização do setor ou apenas uma transferência de patrimônio público para o capital privado, sem as devidas garantias de que os objetivos sociais serão efetivamente alcançados.
O papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nesse processo é particularmente controverso e merece análise cuidadosa. Instituição criada para fomentar o desenvolvimento nacional, o BNDES tem atuado como verdadeiro articulador das privatizações, oferecendo não apenas recursos financeiros – com estimativa de R$ 83 bilhões em investimentos até 2026, dos quais R$ 29,5 bilhões do próprio banco – mas também apoio técnico e institucional para estruturar as licitações. Atualmente, 34 projetos estão sendo modelados pelo banco, com expectativa de que 24 sejam lançados em 2025, movimentando R$ 74,6 bilhões. Críticos apontam que o BNDES, um banco público, está cumprindo um papel “pernicioso” ao incentivar ativamente a privatização, fornecendo aos governos estaduais toda a documentação necessária para os processos licitatórios. Essa postura levanta questões sobre contradições internas ao próprio governo federal, especialmente considerando que o presidente Lula, durante a campanha eleitoral, afirmou que “água e saneamento não se transfere, não se privatiza, que é um direito da população”.
A experiência internacional oferece lições importantes e preocupantes sobre os riscos da privatização do saneamento. Entre 2000 e 2019, 312 cidades em 36 países reestatizaram seus serviços de água e esgoto, incluindo metrópoles como Paris, Berlim, Buenos Aires e La Paz. Na França, considerada inspiração para várias reestatizações europeias, 152 serviços voltaram às mãos do Estado, sendo o caso de Paris em 2008 o mais emblemático. O Reino Unido, pioneiro na privatização do saneamento durante o governo Thatcher há 34 anos, enfrenta hoje uma crise profunda no setor: empresas endividadas, degradação ambiental, aumento da desigualdade e um sistema onde os interesses dos acionistas prevaleceram sobre o interesse público. Dados mostram que as empresas privatizadas de água e esgoto da Inglaterra pagaram 57 bilhões de libras em dividendos desde 1991, enquanto a qualidade dos serviços se deteriorou. Mesmo nos Estados Unidos, berço do liberalismo, apenas 15% do saneamento é privado, com 85% permanecendo no âmbito público. Esses exemplos demonstram que a privatização não é uma tendência global irreversível, mas sim um modelo em questionamento até mesmo em países que o implementaram décadas atrás.
O que mais preocupa especialistas é a configuração de uma verdadeira “bomba-relógio” no setor, como alertou o engenheiro Adauto Santos do Espírito Santo durante o seminário do Ipea. Os estudos que sustentam as concessões atuais sistematicamente superestimam receitas, subestimam investimentos necessários e excluem parcelas significativas da população já atendida. Essa metodologia viciada pode levar a um cenário catastrófico em que, após 35 anos de concessão, os sistemas retornem ao poder público completamente sucateados, sem capacidade de atender adequadamente à população. A lógica perversa é simples: empresas privadas priorizam áreas urbanas densas e de maior poder aquisitivo, onde o retorno financeiro é garantido, enquanto comunidades remotas, periféricas e carentes – exatamente aquelas que mais precisam de investimentos em saneamento – são sistematicamente excluídas dos contratos. Essa seletividade geográfica e social não apenas perpetua desigualdades históricas, mas as aprofunda, criando um apartheid sanitário que poderá marcar o Brasil por décadas.
Olhando para os próximos 35 anos, o horizonte que se desenha é profundamente preocupante se não houver mudanças de rumo. A fragmentação das competências federativas, a perda de protagonismo dos municípios e a ausência de um sistema nacional de saneamento estruturado criam condições para que a universalização se torne uma quimera ainda mais distante. A integração necessária entre saneamento e agenda climática, fundamental diante do aumento dos eventos extremos, fica comprometida quando a lógica de mercado prevalece sobre planejamento público de longo prazo. Sem coordenação nacional efetiva, controle social adequado e priorização das populações mais vulneráveis, o Brasil pode chegar ao final desses contratos de concessão com um sistema dual: ilhas de excelência para quem pode pagar e desertos de abandono para quem mais precisa. A experiência internacional mostra que esse caminho não é inevitável, mas requer coragem política para reconhecer os equívocos e construir alternativas que coloquem o direito humano à água e ao saneamento acima dos interesses do capital. A água não é mercadoria, é vida, e como tal deve ser tratada por qualquer sociedade que se pretenda justa e civilizada.
